quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Tradições culturais no Brasil do pós-1964

Tradições culturais no Brasil do pós-1964

Com os desdobramentos da História Cultural, voltada ao diálogo com a Antropologia, com a Crítica Literária, com a História da Arte e a Crítica Cultural, o historiador se viu em contato com documentos não apenas escritos, mas também sonoros e iconográficos. A produção historiográfica mais recente tem feito uso abundante de fragmentos textuais, como cartas, poemas e crônicas, de fragmentos sonoros, como partituras, letras de músicas e performances, e de fragmentos iconográficos, como fotografias, pinturas, esculturas, objetos e arquitetura. Não é nova a proposta de se trabalhar com fontes históricas não-verbais. Marc Bloch e Lucien Febvre, os fundadores dos Annales, conclamaram, em 1929, os historiadores a saírem dos seus gabinetes e farejarem, por quaisquer meios, "a carne humana"1 em qualquer lugar onde pudesse ser encontrada. Para os que ouviram o apelo de Bloch e Febvre, o texto ganha contornos mais amplos, incluindo toda a produção material e imaterial.
No caso da História, o quesito leitura vem sendo desdobrado em múltiplas possibilidades de apreensão do passado através da diversidade de fontes documentais disponíveis ao historiador. O trabalho com fontes históricas não verbais foi enfatizado também pelo historiador francês Fustel de Coulanges, ainda no século XIX, ao afirmar que “onde o homem passou e deixou alguma marca de sua vida e inteligência, aí está a História”(Coulanges apud Le Goff, 1984: 219).
Lembrando Jacques Le Goff, o documento não é inócuo. É antes de mais o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente –determinada imagem de si próprias (Le Goff, 1984: 103).
A utilização de fontes literárias no centro da pesquisa histórica é uma prática que vem de longa data. Já no universo dos metódicos positivistas do final do século XIX, evidencia-se aceitação de textos literários como documentos para o historiador, desde que guardadas algumas precauções. Ao chamar para a necessidade do diálogo da história com outras áreas, propunha-se, nesse movimento, o contato com fontes até então desconhecidas ou desconsideradas. A abertura para os “novos objetos” trouxe a idéia de que tudo deve ser historicizado, portanto, todo vestígio é documentação.
No campo da historiografia, alguns trabalhos também têm cruzado as fronteiras de outros campos do saber como é o caso da música. Também é recente a aproximação de historiadores com os textos teatrais. Um contato nem sempre fácil, pois, como constata Robert Paris, os objetos artísticos – o texto literário – são documentações portadoras de determinadas especificidades, que cabe ao historiador investigar: à diferença de seu colega que exuma uma peça inédita de arquivo, o historiador, aqui, não é nunca o primeiro leitor do documento. Ele aborda esse documento através de uma escala, um sistema de referências, uma 'história da literatura', que já separou o joio do trigo hierarquizando
as escritas, as obras e os autores. (...) Uma segunda dificuldade trata-se de mais uma armadilha, seria a de tratar o documento literário como uma simples confirmação - o que ele também pode ser - ou como uma ilustração de informação recebida das fontes tradicionais (Paris, 1987-1988: 85).
Um estudo de história sobre as iniciativas dos grupos de teatro popular no Brasil, na década de 1960 – em que pese um diálogo essencial com os pesquisadores sociais que enfrentaram esse tema – e que privilegia práticas e representações do movimento operário, implica estabelecer uma relação importante no campo da história cultural. Sobretudo, ao interrogar os textos (operários e acadêmicos), as imagens e os sons como fontes (ler-ver-ouvir) o interesse é buscar como que é “historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação” (Chartier, 1988: 24).
Partindo destes princípios reguladores, cabe lembrar que no campo da história cultural a recuperação das práticas culturais como “práticas, complexas, múltiplas, diferenciadas” estão sintonizadas com a preocupação de entender como essas “constroem o mundo como representação” (idem). Portanto, trabalhar a história cultural do social, a partir de sua “matéria-prima” essencial que são os textos, significa tomar por objeto a compreensão das formas e dos motivos - ou, por outras palavras, das representações do mundo social - que à revelia dos atores sociais (sujeitos), traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse (idem: 19).
Os textos não possuem um sentido oculto, intrínseco e único que caberia a crítica descobrir, “é necessário relembrar que todo o texto é o produto de uma leitura, uma construção do seu leitor” (Chartier, 1988: 61). Assim, entre as décadas de 80 e 90 do século XX, as lideranças sindicais de São Bernardo do Campo – grande pólo industrial do Estado de São Paulo – estavam empenhadas em mobilizar os metalúrgicos por meio de programações culturais, planos de formação política e projetos de comunicação. Ao procurarem organizar a categoria, destacaram o campo da cultura como parte de uma estratégia de luta decisiva naqueles anos.
Já nos idos da década de 1970, o interesse pela arte incentivava Eneida a diferentes formas de expressão cultural e artística através dos jovens, com os grupos de teatro e as experiências com o teatro. Algum tempo depois, vêem se juntar a essas manifestações o Festival de Inverno, as rodas de violas, os concursos musicais e a organização dos festivais. Contando com a participação de artistas e intelectuais nesses eventos, os artistas mostraram algo digno de registro.
Por isso, ao focalizar esses homens, sujeitos sociais com práticas e experiências de vida e consciência distintas, o fator que prepondera é a disponibilidade para o exercício pleno de sua cidadania. Os artistas não são vistos como uma “coisa”. Seguindo os ensinamentos de Raymond Williams (1969), E. P. Thompson (1987) e Eric Hobsbawm (1987 e 1991), os homens são um conjunto de pessoas capazes de criar sua própria tradição, apesar da modernização da mídia de massa e da incorporação à cultura massificada.
Pode-se afirmar que mesmo em plena ditadura militar os artistas de Campina Grande dirigiram seu foco não apenas às atividades diretamente políticas, mas, também para o plano cultural fizeram sentir os seus “produtos artísticos”, ao seu modo. Refiro-me, aqui, à produção artística elaborada pelos próprios artistas, como o teatro, os cordéis, as poesias e as músicas.
No que diz respeito ao teatro, esse processo atingiu um o seu ponto mais alto, em decorrência do próprio caráter coletivo da criação de dezenas de peças que foram encenadas nos bairros da periferia por jovens que se dirigiam a uma platéia igualmente pobre que, no final, era convocada para debater a realidade por todos vivida. Essas peças, que incluíam números de dança e de música, eram em geral curtas e simples: mostravam algumas cenas do cotidiano dentro e fora da vida cotidiana.
Entre os anos de 1976 e 1977, por exemplo, o Grupo de Teatro Ferramenta, criado por iniciativa dos próprios operários e ligado ao Sindicato de São Bernardo, apresentava o “Jogral 1o de maio”, no qual eram encenadas algumas passagens da luta dos trabalhadores pela conquista da jornada de oito horas de trabalho. O repertório incluía trechos da peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, e canções de Chico de Assis e Carlos Lyra, como a “Canção do subdesenvolvido” e “Canção do povo que espera dias melhores”.

No período de 1981 a 1985, o Grupo de Teatro Forja (também vinculado ao sindicato, após a dissolução da Ferramenta) apresentou o Operário em construção em inúmeros sindicatos e sociedades de bairros da região do ABC paulista. O grupo construiu uma peça teatral utilizando-se de poesias e músicas no caso, “O poeta operário”, de V. Maiakóvisky, “O operário em construção”, de Vinícius de Morais, “Os estatutos do homem”, de Thiago de Melo, e “Carta a um operário”, de Lourenço Diaféria. E as melodias de Tonico e Tinoco, John Lennon, Milton Nascimento e Chico Buarque.
Os grupos Ferramenta e o Forja (assim como outros de extração popular) procuravam se vincular aos movimentos sociais de bairros, aos sindicatos, às comunidades de base, fundindo política e cultura na reorganização da sociedade civil sob a ditadura.3 O teatro produzido na periferia urbana se associava, assim, aos movimentos sociais, o que evidenciava o aparecimento de novos públicos, de novas temáticas, de novas linguagens e a dinamização de canais não convencionais de comunicação. Sobretudo, o teatro da periferia se colocava como objeto na própria cena historiográfica.
Nesse sentido, vale ressaltar a mensagem de um dos folhetos produzidos pelo departamento cultural, em 1982, – a propósito do I Ciclo de Cinema: O Departamento cultural do sindicato ‘arregaça as mangas’ e promove uma série de atividades (...) para o trabalhador e sua família. Além das dificuldades salariais, do desemprego ou das precárias condições de trabalho, o operário enfrenta um outro problema que é a falta de lazer e de diversão. E tem mais. A cultura feita pelo trabalhador como a poesia, a música, o teatro etc, nunca atingem os meios de comunicação como a televisão e o rádio, porque tudo está nas mãos da classe patronal ou do governo, que é tudo farinha do mesmo saco. “Por isso iremos promover debates, teatro, festival de música, de poesia, biblioteca, Centro de Memória das nossas lutas, shows, cinema, etc” (apud Paranhos, 1999: 78).
No início do ano de 1985, o Sindicato de São Bernardo iniciava mais uma Campanha Salarial, tendo ao seu lado o Grupo de Teatro Forja. A campanha daquele ano se dava num momento particular da vida do país. Era o momento da posse de Tancredo Neves, primeiro governo civil (eleito indiretamente) depois de 21 anos de regime militar.
Há que se lembrar que a vitória das oposições nas eleições de 1982 contribuiu decisivamente para enfraquecer ainda mais o governo militar. O descontentamento dos movimentos populares e sindicais, diante das condições de vida e de trabalho, também era intenso. Catalisando esse descontentamento e exigindo o fim imediato do governo, a campanha das “Diretas Já” mobilizou politicamente o país em uma proporção inédita em sua história recente. Embora derrotada no seu objetivo concreto e imediato, a campanha levou à implosão do regime militar e de seu em sua história recente. Embora derrotada no seu objetivo concreto e imediato, a campanha levou à implosão do regime militar e de seu partido de sustentação, assegurando a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Em que pesem, entretanto, as objeções de setores importantes do movimento sindical, o novo governo civil acenava para mudanças tanto nos aspectos institucionais (no sentido de ampliação das liberdades políticas e individuais) como nas condições materiais e culturais de existência dos trabalhadores.
É precisamente esse filão político que o Forja vai explorar na Campanha Salarial. A propósito de uma possível convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte (decisão tomada pela OAB-SP), o grupo começou a elaborar uma peça de rua com essa temática. De acordo com o jornal Suplemento, “uma constituinte livre e soberana passa pelas mãos dos trabalhadores. (...) Para nós, trabalhadores, interessa apenas uma Constituinte que defenda os nossos interesses, uma Constituinte, eleita com liberdade pela maioria do povo, o povo seja a maioria” (apud Paranhos, 1999: 95).
Assim, o Grupo Forja encenou o espetáculo Boi Constituinte. A peça é composta de duas danças populares brasileiras: o “Boi Bumbá” e a “Congada”. Mediante as imagens, as evoluções, mostram-se os interesses dos trabalhadores e dos patrões na luta do dia-a-dia. No caso, apresentava-se a recapitulação da luta pela Anistia, pela liberdade política e pelo fim das prisões. A “nova constituição” era representada pelo “novo boi”. Este usava uma capa que continha “pedaços da lei” feita pelos trabalhadores. A proposta de arte operária – encampada por muitos grupos teatrais que atuavam na periferia – ligava dois pólos: política e estética. Os trabalhadores chamavam a atenção para um outro tipo de teatro, que buscava, entre outras coisas, o engajamento social aliado ao universo lúdico.
O “mundo operário” era escrito e (re)encenado pelos próprios envolvidos. Os atores-operários de São Bernardo, por meio das peças teatrais (desde o grupo Ferramenta), fundiam diferentes expressões, imagens, metáforas, canções, alegorias e outras figuras que, em conjunto, compunham um cenário significativo, de articulações de um modo de pensar e agir, uma visão do mundo. Em última instância, as formas e produções culturais criam-se e recriam-se na trama das relações sociais, da produção e reprodução da sociedade, como um todo e em suas partes constitutivas.

Canções e vozes do Brasil

Este trabalho, ancorado especialmente na vertente dos estudos de E. P. Thompson, recebeu dele uma notável influência ao tratar e pensar a tradição. Ao abordar a experiência dos metalúrgicos de São Bernardo entendo-a como um processo tanto “econômico” quanto “cultural”. Isto é, a formação dos metalúrgicos (e da classe operária) se realiza na fábrica, no sindicato, no bairro, nas comissões de fábricas, nas greves, nas festas e/ou piqueniques. A ênfase, retomando uma passagem de E. P. Thompson, é na “simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos os sistemas e áreas da vida social” (Thompson, 2001:254).
Ao criticar a primazia do “econômico” – em “que as normas e a cultura são vistas como reflexos secundários” –, Thompson destaca que “sem produção não há história”. No entanto “devemos dizer também: ‘sem cultura não há produção’ (idem: 258-259). Desse modo, as relações sociais de produção – no seu sentido amplo – estão presentes não apenas no teatro, mas também nos festivais de música dos trabalhadores paulistas.
Os primeiros festivais datam do início da década de 1980 e durante os anos de 1990 vão se constituir numa referência político-cultural de extrema importância, para o movimento operário. No V Congresso dos metalúrgicos, em 1987, já se apontavam para as diferentes “formas de luta da categoria”, que incluíam desde a campanha salarial, comissão de mobilização, cultura e formação, imprensa, Televisão dos Trabalhadores -TVT e Rádio dos Trabalhadores. Tendo como suporte essas resoluções, foi rediscutido pelos diretores e assessores o trabalho de base desenvolvido pelo sindicato. Foi possível então definir um projeto político, exposto no texto “Trabalho de base: plano global de organização e formação”. Após anos de luta, conflitos e discussões, experiências sindicais e culturais diferenciadas eram sistematizadas e ratificadas como prioritárias para o sindicato de São Bernardo. Com relação às atividades culturais, o texto deixava claro o compromisso de encaminhar a formação de um Grupo de Cultura, que deverá reunir os ativistas e associados interessados em levar um trabalho nessa área, (...) como: filmes, incentivo à formação de grupos de teatro, festival de música popular, concurso de trovas e repentes, apresentação de grupos folclóricos, shows, forrós, campeonatos, concursos, exposição de produção gráfica sobre nossas etc. (Sindicato dos Metalúrgicos, 1989: 63).
O departamento cultural do sindicato não só apoiava esta iniciativa, como procurava dar todo o suporte necessário às novas atividades. Segundo, um dos seus dirigentes o interesse era: “valorizar o ser humano como um todo, para transformá-lo de consumidor de cultura para produtor”. Na avaliação de um outro diretor: “São os próprios trabalhadores produzindo e consumindo sua própria cultura” (idem: 98). As músicas apresentadas pelos metalúrgicos, nos festivais, focalizavam, entre outras, questões como: a campanha salarial da categoria, as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, as peripécias dos retirantes, a situação dos estados mais carentes, particularmente o Nordeste, os sem-terra, os meninos de rua, as dores de amor.
Vale aqui ressaltar os troféus e prêmios especiais, em dinheiro, para a torcida mais animada e para a música que melhor simbolizasse as lutas dos trabalhadores. Esses eventos contavam com a divulgação de diferentes meios de comunicação tis como: os jornais do sindicato e das empresas, a veiculação nas portas de fábricas e nas assembléias, a revista Ligação, na TVT e na Rádio dos Trabalhadores. É bom esclarecer que tanto a Televisão como o Rádio funcionavam, desde 1986, precariamente sem a concessão legal do governo. Por sinal, essas experiências “piratas” foram extintas no ano de 1993. Mas, enquanto foi possível, tanto a TV como o rádio fizeram a cobertura completa dos festivais, com direito às entrevistas dos participantes e do público presente.
No ano de 1993, houve um empenho considerável dos dirigentes sindicais, mais uma vez, no que se refere à propaganda. O resultado foi a produção do primeiro disco do festival. Desta vez as músicas escritas e cantadas pelos trabalhadores eram disponibilizadas para um número maior de pessoas. Fazendo uma análise preliminar desse disco, que contém as doze finalistas, retomo novamente a questão dos temas tratados nas canções. A maior parte das músicas retrata a condição do trabalhador brasileiro (explorado no local de trabalho e fora dele) e expulso de sua terra natal. A música sertaneja “O descamisado” registra um recado para o trabalhador e para aqueles que votaram para presidente em Fernando Collor, o autoproclamado “defensor dos descamisados”: A estrutura do país/ Quem faz é o trabalhador/ Vamos cuidar com carinho/ Deste irmão sofredor/ Para que o Brasil novo/ Encha a panela do povo/ Sem regular seu sabor/ Deixe esse papo furado/ Quem já era pé descalço/ Agora é descamisado/ Fique alerta, ô minha gente/ Pra não ser mais enganado. A tristeza pela expulsão da terra foi expressa também em “Matuto, chora não”: Sou bicho do mato na cidade/ Minha liberdade, a ilusão/ Hoje a saudade chora triste/ Dentro da jaula que virou meu coração/ Eu sou matuto/ Eu não sei chorá, não/Nunca deveria é ter deixado o meu sertão.

Premiada como a melhor letra relacionada à luta dos trabalhadores, o forró “Sou brasileiro” seguia o mesmo rumo: Vim para o sul pra minha vida melhorar/ Porque o norte o governo abandonou/ Eu sofro tanto por não estar do lado dela/ Daquela terra que Deus abençoou/ Mas veio o homem com toda sua maldade/ E esse povo mais humilde escravizou/ Sou brasileiro e não tenho preconceito/ Esse é o meu jeito de poder analisar.
É interessante destacar que a música campeã daquele festival, “A magia do blues”, não fala do mundo do trabalho ou do engajamento político. Eis um trecho: Na madrugada/ Chora uma guitarra/ Um blues antigo/ Que há muito não tocava/ Parei pra ouvir/ Olhei e reconheci/ Um velho homem/ E era B. B. King. O forró, o samba e o sertanejo são os gêneros musicais presentes nesse caldeirão cultural que mistura o instrumental às letras engajadas. Na canção “Armazém de injustiça”, o “Homem trabalha em busca de um futuro/ Futuro de um povo que nascerá trabalhando/ Chegará um dia que toda a nação fará da justiça/ Sua libertação”. A música sertaneja “Dignidade” lembra que, “Enquanto alguém está pedindo/ Uma reforma agrária para a agricultura/ Tem gente levando cerca para cultivar/ Fome e capim gordura/ É triste ver adolescente tendo que roubar/ Para comprar pão”. A reforma agrária também é o tema da canção “Ouro, prata e pobre”.
Os violeiros-metalúrgicos vão compor e recompor diferentes universos para as suas intenções e desejos particulares. No caso, significa aliar a melodia e letra à sua própria experiência social. Desta forma, volto à idéia de Eric Hobsbawm, ao mencionar a importância das “canções funcionais” – que foram trazidas pelos escravos para os Estados Unidos – como parte de uma cultura musical e social das classes trabalhadoras. Nesse sentido, ao mesmo tempo que os operários do ABC procuraram levar trabalhos mais engajados politicamente, a distração também estava presente. Os assuntos da vida cotidiana se embaralhavam com os da diversão. O que me leva a resgatar uma frase de Richard Hoggart: “A arte é para ser utilizada”, seja no puro divertimento ou nas coisas “reais”, eu acrescentaria.
Para aqueles homens os festivais significavam lazer, entretenimento, política, mistura de gêneros musicais, linguagens e sons diferenciados, a possibilidade de “sair” e de “entrar” numa sociedade desigual e excludente. Para terminar, lembro que, no último CD de Chico Buarque, ao falar sobre o “Subúrbio” carioca, mesmo que noutro contexto, podemos rastrear novamente essas misturas musicais, assim como os “desvalidos” de um lugar chamado Brasil:


Dança teu funk, o rock,
Forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap
Fala no pé
Dá uma idéia
Naquela que te sombreia
Lá não tem claro-escuro
A luz é dura
A chapa é quente
Que futuro tem
Aquela gente toda
Perdido em ti
Eu ando em roda
É pau, é pedra
É fim da linha
É lenha, é fogo, é foda






1 Ver Bloch, 2001.
2 Ver Hobsbawm, 1991.
3 Para maiores detalhes sobre os grupos Ferramenta e Forja, ver Paranhos, 1999 e 2005.


REFERENCIA

Bloch, Marc. Apologia da história, ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.2001
Chartier, Roger. A história cultural. Lisboa: Difel. 1988
Hobsbawm, Eric J. “A formação da cultura da classe operária britânica”. In Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 251-272. 1987
__________________. História social do jazz. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
Hoggart, Richard. 1973/1975. As utilizações da cultura. Lisboa: Presença.
Le Goff, Jacques. 1984. Enciclopédia Einaudi (v. 1 e 5). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
Paranhos, Kátia Rodrigues. 1999. Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos – 1971/1982. Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Memória.
______________________. 2005. Teatro e trabalhadores: textos, cenas e formas de agitação no ABC paulista, ArtCultura, 11, 101-115. Paris, Robert. 1987-1988. “A imagem do operário no século XIX pelo espelho de um vaudeville”, Revista Brasileira de História, 15, 61-89.
Thompson, E. P. 1987. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

________________. 2001. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp.
Williams, Raymond. Cultura e sociedade: 1780-1950. 1969. São Paulo: Nacional.
Discografia
LP 5º Concurso de Música dos Metalúrgicos do ABC. 1993. Sindicato dos Metalúrgicos
do ABC. Brasil.
”Subúrbio” (Chico Buarque), Chico Buarque. CD Carioca. 2006. Biscoito Fino. Brasil.

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