sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

CIDADANIA ETC.

CIDADANIA


Hoje podemos afirmar que a cidadania é uma idéia em expansão. Entretanto, a ação política continua desvalorizada, uma vez que, no contexto das transformações que afetam o Estado, a economia e a sociedade, assiste-se à fragmentação societária, gerada pelas tendências contemporâneas do mercado e pela incapacidade do ordenamento legal-institucional vigente para garantir os princípios igualitários de cidadania. O cidadão pode ser visto apenas como o contribuinte, o consumidor; sequer o principio constitucional de escola para todos consegue ser cumprido.
Entretanto, sabe-se que existe, no sistema de ensino brasileiro, um espaço para a educação do cidadão na maioria das vezes como ordenamento retórico, ou seja, presente como objetivo precípuo em todas as propostas oficiais das Secretarias de Educação, a educação como um dos principais instrumentos de formação da cidadania, sendo esta entendida como a concretização dos direitos que permitem ao individuo sua inserção na sociedade.
Assim, se a educação como instrumento social básico é que possibilita ao individuo a transposição da marginalidade para a materialidade da cidadania, não é possivel pensar sua conquista sem educação. Educar, nessa perspectiva, é entender que direitos humanos e cidadania significam prática de vida em todas as instâncias de convívio social dos indivíduos: na família, na escola, na igreja, no conjunto da sociedade.
Ao se propor um novo enfrentamento da realidade escolar tal como se apresenta acredita-se ser uma idéia para construção da cidadania porque a escola como lugar central da educação, oferece garantia visível e sempre aperfeiçoável da qualidade esperada no processo educativo; sinaliza o processo educativo como construção coletiva dos envolvidos; indica a função precípua da escola que, a par de administrar bem, deve, sobretudo cuidar da política educativa.
Para isso, deve-se discutir sobre a concepção de cidadania no mundo contemporâneo e apresentar algumas reflexões sobre a escola como espaço de veiculação da cidadania ativa, como lócus privilegiado de efetivação da educação. As atribuições das diferentes instâncias decisórias – governo e escola – nesse processo, considerando-se a necessidade de fortalecimento das relações entre a escola e o sistema de ensino para a consolidação da escola cidadã pode surgir uma nova escola para um novo tempo.
No ano em que foram comemorados os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a discussão do tema cidadania ocupou lugar de destaque e vem atualmente exigindo cada vez mais espaço nos meios de comunicação e nos segmentos sociais, políticos, culturais e religiosos. Todos, de diferentes tendências ideológicas, em seus vários matizes, exibem arroubos de fé democrática e cidadã. Até o homem comum a discute para reivindicar direitos.
Mas basta olhar em volta para perceber que, nas democracias burguesas, a cidadania coexiste, contraditoriamente, com as desigualdades. Os direitos são reconhecidos como naturais; porém, pelas relações de poder e exploração, não é assegurado seu exercício ao cidadão. A política educacional é um exemplo de como o Estado procura produzir uma aparência de igualdade de oportunidades e neutralidade, quando elas estão ligadas ao movimento de uma economia regulada pelo lucro. O Estado surge de uma relação entre iguais, como se emanasse da vontade e dos interesses individuais e não de classe, como poder materializado no direito e nas instituições, constituído por todos os sujeitos sociais, indistintamente. Apresentando-se como elemento neutro, benfeitor/protetor das classes sociais, passa a será a sua garantia do trabalhador assalariado e não apenas da burguesia. “Interpondo limites negativos ou promovendo o ajuste social, o Estado, objetivando em instituições, aparece como encarnação de uma racionalidade geral e não capitalista” (O’ Donnel 1981, p. 74)
Esse paradoxo está no centro do debate atual e abarca questões que dizem respeito a um de seus aspectos mais desconcertantes: a tradição autoritária e excludente nas transformações em curso no mundo contemporâneo. Na década 1980, as aspirações de uma sociedade mais justa e igualitária ganharam forma na reivindicação de direitos, projetam-se no cenário político, deixaram marcas em conquistas importantes na Constituição de 1988. Assim, a Constituição Cidadã, se traduziram na construção de sujeitos políticos, hoje reconhecidos como interlocutores legítimos no jogo político nacional.
No entanto, os anos 80, vividos sob o signo da esperança, encerraram-se com o espetáculo de uma pobreza jamais vista na historia brasileira. A década de 1990 emerge, apresentando grandes incoerências: uma democracia consolidada nas instituições e nas regras formais do jogo político, mas que convive, cotidianamente, com a violência, a violação dos direitos humanos, a incivilidade nas relações sociais (Telles 1994; Santos 1987).
Talvez o mais desconcertante esteja no fato de que as modificações constitucionais, que romperam ou prometeram romper o perfil excludente, estratificado e corporativo das políticas publicas, tiveram, na verdade, o efeito de proteger os já protegidos, já que mais da metade da população ativa, entre o desemprego e o vinculo precário no mercado de trabalho, permanece à margem dos benefícios sociais. O resultados de tudo apresenta outro paradoxo: concepções igualitárias e universalistas de direitos reatualizam “a tradição de uma cidadania restrita, assentada na lógica da expansão de privilégios e não na universalização de direitos” (Telles 1994, p. 11)
É possivel falar de uma nova cidadania (Dagnino 1994). Uma primeira distinção emergente do contexto histórico, e que se expressa como diferença conceitual, refere-se à própria noção de direitos. Segundo a mesma autora,

A nova cidadania trabalha com uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de um direito a ter direitos (...) concepção que não se limita a conquistas legais ou ao acesso de direitos previamente definidos, ou à implementação efetiva de direitos que emergem de lutas especificas e da sua pratica concreta (...) Nesse sentido ela é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, de baixo para cima. (p. 107)

Nessa nova configuração de cidadania coloca-se em foco a difícil relação entre Estado e sociedade, e suas implicações; acumulações e direito; economia e eqüidade; desenvolvimento e qualidade de vida. Em torno de tais questões armam-se muitas controvérsias, projetos distintos e mesmo antagônicos sobre o que se entende ou mesmo se espera de uma necessária reforma do Estado e de suas relações com a sociedade civil, bem como da definição do poder regulador. É um debate que chama a atenção para a dimensão fundacional da crise hodierna, que evidencia as questões clássicas dos direitos, da justiça social e da igualdade. O que parece estar em questão talvez não sejam, propriamente, os princípios universalistas de direitos, mas o diagrama político no qual foram formulados, no pressuposto de uma unicidade e uniformidade da ação do Estado, capaz de compensar os efeitos perversos do mercado.
A rigor, o fato implica a ruptura de um padrão burocrático de formulação e gerenciamento de políticas públicas, deslocando-o de arenas propriamente políticas, de representação e negociação, que estabeleçam os termos de compromisso e responsabilidades, publicamente acordados, em torno de soluções sustentáveis nas diversas áreas de intervenção social. Exige que entre Estado e mercado se efetivem fóruns públicos de negociação que possam firmar os direitos como parâmetros no reordenamento da economia e da sociedade, abrigando, no horizonte de propostas para a descentralização e a democratização do Estado, atores diversos nas negociações em torno do uso dos recursos públicos dos quais dependem economia e sociedade.
A construção da cidadania envolve um processo ideológico de formação de consciência pessoal e social e de reconhecimento desse processo em termos de direitos e deveres. A realização se faz através das lutas contra as discriminações, da abolição de barreiras segregativas entre indivíduos e contra as opressões e os tratamentos desiguais, ou Seja, pela extensão das mesmas condições de acesso às políticas publicas e pela participação de todos na tomada de decisões. É condição essencial da cidadania reconhecer que a emancipação depende fundamentalmente do interessado, uma vez que, quando a desigualdade é somente confrontada na arena publica, reina a tutela sobre a sociedade, fazendo-a depende dos serviços públicos. No entanto, ser/estar interessada não dispensa apoio, pois os serviços públicos são sempre necessários e instrumentais.
O papel da comunidade não é substituir o Estado, libertá-lo de suas atribuições constitucionais, postar-se sob sua tutela, mas se organizar de maneira competente para fazê-lo funcionar. Surge daí a necessidade da cidadania, que vai determinar a qualidade do Estado. É ele que tem atrapalhado o processo histórico de formação da cidadania popular, por meio de políticas sociais desmobilizadoras e controladoras, e sem uma sociedade civil que se reconheça sujeito indispensável ao projeto de emancipação. No contexto supracitado, como criar, fazer surgir instrumentações fundamentais da cidadania?
A construção da cidadania e de uma cultura baseada nos direitos sociais e políticos constituem, hoje, um dos problemas mais cruciais para o processo de democratização do Brasil. Aí estão envolvidas questões não apenas de formação de atores sociais, capazes de criação de esferas publicas e democráticas, como importantes instancias de mediação nas relações entre Estado e sociedade.
Atualmente, as demandas pela redemocratização do pais criaram uma rede de atores múltiplos que, atuando por meio de fóruns de expressão nacional e local (movimentos sociais, Organizações Não-Governamentais – ONGs, entidades sidicais e de assessoria, de defesa dos direitos humanos), articulam uma nova linguagem que expressa o direito a ter direitos.
Segundo Benevides (1998, p. 168), a relação entre cidadania e democracia explicita-se no fato de que ambas são processos. Os cidadãos, numa democracia, não são apenas titulares de direitos já estabelecidos, existindo, em aberto, a possibilidade de expansão, de criação de novos direitos, de novos direitos, de novos espaços, de novos mecanismos. O processo não se dá num vazio; a cidadania exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de luta e na definição de instituições permanentes para a expressão política. Nesse sentido, a autora distingue a cidadania passiva – aquela que é outorgada pelo Estado, com a idéia moral da tutela e do favor – da cidadania ativa – aquela que institui o cidadão como portador de direitos e de deveres, mas essencialmente criador de direitos de abrir espaços de participação.
A vigência da cidadania ativa requer a consciência clara sobre o papel da educação e as novas exigências colocadas para a escola que, como instituição para o ensino a educação formal, pode ser um lócus excelente para a construção da cidadania. Uma escola autônoma e de qualidade, em que o saber veiculado oportunize a todos a capacidade de exercê-la com dignidade.
A educação, como pratica efetiva, representa decidido investimento na construção da cidadania. No entanto, apresenta historicamente caráter restrito, convivendo com uma parte excluída. A igualdade de direitos não só não suprimiu as desigualdades sociais, como as reforçou, ao mascará-las sob o principio da liberdade. Para que a pratica educativa seja práxis, é preciso que se de no âmbito de um projeto que, além da intencionalidade, suponha condições objetivas de concretização.
A escola é o lugar institucional do projeto educacional. Deve instaurar-se como espaço-tempo, como instancia social mediadora e articuladora de dois projetos: o projeto político da sociedade envolvente e o projeto pessoal dos sujeitos envolvidos na educação. Considerar a formação da cidadania como fundamental para consolidação da democracia subentende que as instituições escolares sejam democráticas, que ali haja tolerância para com os que pensam e agem diferentemente. “A gestão democrática supõe praticas escolares democráticas, sem as quais, preparar para a cidadania torna-se um discurso vazio” (Balestreri 1992, p. 11).
Tornar-se cidadão esta longe de esgotar-se como aquisição legal de um conjunto de direitos, mas se constitui em novas formas de sociabilidade. A escola caracteriza-se como a institucionalização das mediações reais, para que a intencionalidade possa tornar-se efetiva, concreta, histórica, a fim de que os objetivos intencionalidades não fiquem apenas no plano ideal, mas coletivo da sociedade com os projetos existenciais de alunos e professores. É ela que torna educacionais as ações pedagógicas, à proporção que as impregna com as finalidades políticas da cidadania.
Sem negar o valor da educação informal em outros espaços sociais, a escola é o lugar, por excelência, onde o processo de construção do conhecimento se da de forma sistematizada. Dentre outros desafios, ela deverá construir formas de enfrentamento para as novas exigências da sociedade que se anuncia, caracterizada pelo avanço irresistível e acelerado da revolução cientifico-tecnologica, com todas as suas contradições, num mundo marcado pelas desigualdades e suas conseqüências em todos os setores.
Assim, se a escola cidadã é o horizonte, o ideal a que se quer chegar, então como deve ser essa escola? A partir de que diretrizes, emanadas do sistema, a educação pode contribuir para a construção da cidadania, para a qualidade existencial? São indagações para as quais não se terem certezas definitivas, apenas clareza quanto a alguns indicativos. O que se sabe, entretanto, é onde está, e para onde está indo, essa escola não se sustenta mais.
Na busca de transformação, a escola e a sociedade planejam e realizam ações viabilizam o processo de qualificação do ensino publico. Contudo, muitas vezes essas iniciativas ficam fragilizada, já que estão presentes em vários fatores obstaculizadores como: as formas de gestão, a desconcentração como descentralização, a autonomia outorgante. É preciso ter claros a função do Estado, da coordenação geral da política educacional, da garantia da melhoria da qualidade de ensino, de manutenção do sistema etc., e o papel da escola nesse processo.
No contexto da redemocratização, é preciso reorganizar os espaços de atuação e as atribuições das diferentes instâncias decisórias – governo, secretaria de educação, núcleos de ensino, escola – com novos processos e instrumentos de participação, de parceria, de controle, a fim de possibilitar a construção da cidadania na sociedade.

REFERENCIAS:
BALESTRERI, Ricardo Brisolla. O que é educar para a cidadania. IN: Educando para a cidadania: Os direitos humanos no currículo escolar. Porto Alegre: Centro de Assessoria e Programas de Educação para a Cidadania – Capec, 1992, pp. 9-13.
BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita.A cidadania ativa: Referendo, plebiscito e iniciativa popular. IN: Ensaios nº 136. São Paulo: USP, 1991.

DAGNINO, Evelina, Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. IN: DAGNINO, Evelina (org). anos 90: Política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
O’DONNEL, Guilhermo. Anotações para uma teoria de Estado. In: Revista de Cultura e Política, nº 3. São Paulo: CDEC?Paz e Terra, 1981, pp.71-93.
SANTOS, Wanderley Cidadania e justiça. A política social na ordem brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: ED. Campus, 1987.
TELLES, Vera Sociedade civil e a construção de espaços públicos. IN: DAGNINO, Evelina (org). Anos 90: Política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Nenhum comentário: