quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

DITADURA NA PARAÍBA: “CABRA MARCADO PAR MORRER”

DITADURA NA PARAÍBA: “CABRA MARCADO PAR MORRER”

O filme intitulado “Cabra Marcado para Morrer” de Eduardo Coutinho, se destaca por vários elementos, o narrador se coloca desde o início do filme como personagem que participa contando e vivendo sua história só atrás da câmera como também na frente dela, visível e presente junto com os outros personagens. “Cabra Marcado para Morrer” é uma narrativa semi-documental da vida de João Pedro Teixeira através das palavras da viúva, Elisabeth Teixeira, que conta a sua vida nesses vinte anos assim como a de seus filhos separados dela desde dezembro de 1964. Conta a história de um líder camponês da Paraíba, assassinado em 1962, mas teve as filmagens interrompidas em 1964, em razão do golpe militar e recomeçado 17 anos depois recolhendo depoimentos dos camponeses que trabalharam na primeira filmagem. Sem dúvida, conta a história das Ligas Camponesas da Galileia e de Sapé. Neste sentido, passado e presente vão se articulando ao longo do filme na tarefa de recompor as relações perdidas entre os trabalhadores rurais e entre mães e filhos que a ditadura havia dispersado. O compromisso do filme com a realidade constrói a cumplicidade com o espectador. E assim, o filme se encarrega ao mesmo tempo de promover aquilo que Elizabeth almejava fazer: recompor sua família.
Vale ressaltar neste contexto histórico que as Ligas Camponesas vinham sendo criadas desde meados dos anos 50 com o objetivo de conscientizar e mobilizar os trabalhadores rurais na defesa da reforma agrária. O período de 1961-1964, o número dessas associações cresceu muito e, junto com elas, também se multiplicaram os sindicatos rurais. Dessa forma, os camponeses organizados nessas ligas ou em sindicatos ganharam mais força política para exigir melhores condições de vida e de trabalho para o homem do campo. Percebemos que o filme se caracteriza como gênero de documentário, uma vez que sua preocupação é a de representar um fragmento do momento histórico. Nesse sentido, o ponto de partida do autor está sempre se referindo a alguém a um grupo de pessoas, instituição, um lugar ou manifestação cultural. No documentário, o “outro” está sempre presente como representando, revelando o campo social.
As diferentes formas que tomam as relações entre sujeito realizador e o objeto representado vão permanecer as discussões e as diferentes posturas assumidas pelos documentários e seus realizadores. Cabra Marcado para Morrer”, se insere dentro do contexto e representação direta do documentário que teve início no final da década de 50 marcando um novo tipo de interação do realizador com a realidade a ser representada. O compromisso social é um conceito chave nesse documentário que consegue traduzir um longo período da história do Brasil do ponto de vista social, político e sobretudo humano, dando uma nova dimensão histórica à vida de seus personagens e humanizando a história em constante mutação. Dessa forma, não é apenas um retrato das lutas dos trabalhadores rurais organizados em ligas camponesas na década de sessenta, ele faz parte dessa história, é cúmplice com a vida desses camponeses e com suas transformações ao longo do tempo e o autor se torna, ele mesmo, um dos principais personagens do filme, ao lado de Elizabeth Teixeira e o seu marido João Pedro Teixeira.
Assim, o documentário é instumento que se utiliza de vários planos narrativos entrelaçados para contar várias histórias. Ao trabalhar com os vestígios, bem como, com os fragmentos dos fatos e com a memória desses fatos, Coutinho recupera o passado, transforma o presente e prepara o futuro. O filme é a um só tempo representação da realidade e a realidade ela mesma, sendo engendrada a cada instante. O personagem de Elizabeth é a prova viva desse processo. No começo do filme ela é a viúva do líder que participa de assembléias, mas é também uma atriz que interpreta o seu próprio papel, na fase atual ela é Marta que volta ser Elizabeth um dos momentos mais tocantes do filme onde vida e obra se fundem transformando o curso da História para sempre.
Eduardo Coutinho se estrutura através do cruzamento de temporalidades diferentes que se alinhavam, por um lado, pela experiência vivida e traduzida em narração off pelo próprio realizador que conta a sua vivência e intenções, numa espécie de diário pessoal que coloca o espectador em conexão direta com o ponto de vista do diretor e, por outro lado, por sua voz “over” que dá conta de informações de cunho mais objetivo formando um contraponto entre a realidade social e a histórica e o recorte e da experiência pessoal. Cabra marcado para morrer (1984), acaba por desembocar no binômio História-Memória, especialmente por apresentar um conflito de memórias que estão organizadas em dois momentos. No primeiro, a produção do Cabra de 1962-4, contextualizando o seu projeto tanto do ponto de vista estético, como político. Em seguida, destaca-se a peculiaridade da iniciativa de 1982-4 frente às primeiras filmagens e, por conseqüência, a sua historicidade.
Referimo-nos, particularmente, às seguintes observações: “Cabra Marcado Para Morrer” é um filme que discute o tema da desigualdade social. Em outras palavras, preocupa-se com a injusta distribuição da propriedade da terra, com a organização dos trabalhadores para fazer frente a isso, com a repressão ao movimento decorrente do Golpe de Estado de 1964 e, sobretudo, o modo como o filme de Eduardo Coutinho aborda tais temas. A ênfase, neste caso, é colocada tanto sobre o tom de denúncia que o filme, potencialmente, carrega consigo, quanto sobre a sua atualidade.
Neste sentido, afirma-se a peculiaridade de “Cabra marcado para morrer” frente a outros filmes da década de oitenta quanto ao modo de resgatar a História. De fato, Eduardo Coutinho, muito pouco preocupado com os grandes personagens da história brasileira recente, nos mostra todo um período a partir da trajetória de pessoas que, conquanto imersas num contexto notavelmente conflituoso que era o da formação das Ligas Camponesas, são costumeiramente esquecidas, pois que são consideradas pessoas comuns. Embora sejam abrangentes, estes trabalhos não esgotam a questão e não invalidam outras formas de abordagem. Diante disso, poder-se-ia perguntar: o que um historiador de ofício, munido de seus referenciais específicos, poderia dizer sobre este filme de modo que sejam iluminados aspectos relevantes ainda não devidamente explorados? Por isso, como a segmentação das cenas e a repetição constante de alguns planos configuram o modo de organização do Cabra/82-84, segundo nos pareceu, o documentario tem a intenção de recuperar algo que estava até então perdido: a memória dos participantes das filmagens do Cabra/62-64.
Por este motivo, como o filme de 1982-84 é basicamente constituído de fragmentos de memória, é possível perceber a oposição, forte em alguns momentos, entre aquilo que ficou registrado como História na bibliografia sobre o assunto e a Memória presente nos relatos dos participantes das filmagens. Deste modo, a interpretação proposta procurou enfatizar a possibilidade de a Memória vir a corrigir, em algum nível, a História. A ênfase recaiu, portanto, sobre as estratégias de aliança, observáveis no filme, que acabam por aproximar o diretor/intelectual dos seus entrevistados/camponeses. Nestes trinta e cinco dias de filmagem foram feitas algumas poucas locações, correspondendo a menos da metade do roteiro original. Este material foi preservado graças ao fato de que ele tinha sido enviado ao laboratório Líder no Rio de Janeiro para revelação, entre os dias 15 e 17 de março de 1964.
Como se pode notar é muito heterogêneo o material fílmico atualmente disponível para análise e interpretação. Com efeito, na maior parte dos casos é constituído de fragmentos de cena e de planos esparsos. Bom exemplo disso é a cena referente à reunião para a formação da Liga de Sapé. Dela foram feitos apenas três planos. No primeiro, Elizabeth Teixeira serve o café. No segundo, ela vai até a janela e percebe, por meio de ruídos, a presença de pessoas no quintal próximo à casa. No terceiro, ela volta ao local da reunião e avisa: “tem gente lá fora”. Além deste exemplo, é possível lembrar de outros: o da construção do telhado e o da morte do lavrador vista à distância. Ocorre que, fundamentando-se apenas nestes fragmentos, não se pode fazer qualquer comentário mais conclusivo acerca do modo específico como a linguagem cinematográfica foi utilizada no filme de Eduardo Coutinho.
Há, no entanto, uma cena que nos chamou a atenção: meia dúzia de lavradores reivindicando direitos, com o patrão-feitor no alpendre de uma casa de fazenda. A disposição hierática dos personagens na cena trai a improvisação dos autores camponeses: a câmera vê à distância o confronto como se quisesse reduzir cenografia e personagens à condição de significados frontais: o alpendre (área de poder), ponto mais elevado onde se encontra o patrão, e o terreiro, espaço inferior ao alpendre, onde estão os camponeses. Os signos são claros e simplificadores do conteúdo da seqüência e se aproxima das formas de teatro de afastamento, então em voga. O resultado é próximo do esquemático, esfriando as improvisações dos atores e incorporando uma evidente artificialidade a todo o resto».
Outra cena marcante, por exemplo, em relação ao material filmado por Coutinho com os camponeses dezessete anos atrás é projetado em praça pública para todos. Essa projeção é um marco dentro do filme. É a primeira ação propriamente dita do segundo “Cabra Marcado Para Morrer", é uma espécie de marco zero do filme onde passado e presente se fundem para gerar uma nova ação. Ao mostrar o material exatamente como foi filmado, fora de ordem, com cenas incompletas e repetidas, não manipulado pelo realizador, Coutinho não só presta contas de um trabalho em que todos participaram, como se coloca em pé de igualdade para a retomada do filme.
Dessa forma, o presente revelado pelo passado este fato é marcado pelo encontro entre Elisabeth, que vivia na clandestinidade até esse momento, e o responsável pelo filme. A figura de Elisabeth, até então, só tinha sido vista pelas imagens da UNE Volante e no papel de viúva do líder camponês e reconhecido por todos na projeção. O idealizador do filme e sua equipe estão presentes na cena (na verdade, no segundo encontro com Elisabeth) e a realidade dos fatos se mostra com toda clareza. Não existe nada pré-estabelecido, a direção do filme está em jogo a cada troca entre o realizador e o outro, a interação entre todos é que define cada cena filmada. De modo interativo de representação a dinâmica de intercâmbio social entre o idealizador e sujeito é fundamental para o filme e prevalece, como aponta a premissa de que o que ocorreu na frente da câmera não foi representado em sua totalidade pensando-se na câmera. Neste sentido, Coutinho, através do filme, cria um fato. O seu encontro com Elisabeth muda radicalmente a vida dela que até então vivia na clandestinidade com o nome de Marta. O filme lhe devolve a identidade, passa a limpo o seu passado. Realidade e filme se fundem mudando o curso da História.
A entrevista com Elisabeth é intercalada com imagens do primeiro "Cabra Marcado Para Morrer". As imagens encenadas para o documento-drama passam a ter uma conotação de registro, de documento. Um exemplo dessa metamorfose é a cena em que o diretor pergunta para Elisabeth se ela cantava um coco quando os capangas atacavam pedras na casa e ela diz que sim. Enquanto descreve como o fato aconteceu, se vê a cena representada no primeiro filme. Desse modo, a situação se inverte - o que era encenação transforma-se em realidade vivida de fato, perde o caráter de reconstrução para se transformar em prova de que aquilo que está sendo contado ocorreu de fato um dia na vida de Elisabeth. O seu depoimento ao vivo, a sua presença passa a representar a verdade, cabendo às imagens mostrar o ocorrido de fato.
Representar a verdade, cabendo às imagens mostrar o ocorrido de fato.
O filme utiliza o material do primeiro "Cabra" dando-lhe outra conotação que na sua origem teria. As cenas acabam servindo ao documentário atual para retratar fatos reais ocorridos com os personagens reais.O caráter ficcional que essas imagens teriam no filme original deixa de existir. Esse bloco é estruturado pela entrevista de Elisabeth. Ao contar a sua história na clandestinidade ou ao lembrar e reconstruir os fatos ocorridos naquela época, ela chega até o presente refeita, reintegrada às suas origens, à sua identidade. A sua entrevista funciona como fio condutor para que toda história se desenvolva.
O discurso da entrevista alinhava as seqüências que, muitas vezes, voltam para o passado para revelar a ordem dos acontecimentos, ou ainda, buscam as entrevistas de outros camponeses que vão complementar as informações dadas por Elisabeth. Esse vaivém temporal e espacial é amarrado pelo depoimento dela. Em "Cabra Marcado Para Morrer", a postura de Eduardo Coutinho é a de se colocar como um dos atores sociais, de igual para igual, construindo, a cada momento, o fluxo dos acontecimentos através da sua interação com os demais. Em muitos momentos das entrevistas, o filme utiliza o tempo real. Não há corte, a pessoa fala no seu tempo, com a sua gestualidade. Algumas vezes, o diretor do filme está em quadro com o entrevistado, mas não interfere, espera que o outro se coloque e a câmera também observa, não se antecipa. O tempo real, explorado pelo diretor, coloca o espectador como cúmplice dos acontecimentos. Portanto, destacamos a cena em que, começa com Elisabeth dizendo que vai voltar para o mundo, procurar os seus filhos e retomar a sua identidade. O filme continua e se antecipa. O diretor vai em busca da família de Elisabeth. Ela não sabe se os pais estão vivos e não tem notícias de muitos de seus filhos, como ela conta na entrevista. O compromisso com a realidade e a com a cumplicidade construída com o espectador levam Coutinho a procurar o pai de Elisabeth e alguns de seus irmãos, a conhecê-los e entrevistá-lo. Para Elizabeth a luta dos camponeses deve continuar, é preciso acabar com as injustiças sociais nesse país.

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