quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Todo povo tem na sua evolução, vista à distancia, um certo “sentido”. Este se percebe não só nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo.
É isto que se deve, antes de mais nada, procurar quando se aborda a analise da historia de um povo, seja aliás qual for o momento ou o aspecto dela que interessa, porque todos os momentos e aspectos não são se não partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo ultimo do historiador, por mais particularista que seja. Tal indagação é tanto mais importante e essencial que é por ela que se define, tanto no tempo como no espaço, a individualidade da parcela da humanidade que interessa ao pesquisador: povo, país, nação, sociedade, seja qual for a designação apropriada no caso.
O sentido da evolução de um povo pode variar e assim, os acontecimentos estranhos a ele, e as transformações internas profundas do seu equilíbrio ou estrutura, poderão intervir, desviando-o para outras vias até então ignoradas. Portugal nos traz disto um exemplo frisante. Até meados do séc. XIV, e desde a constituição da monarquia, a história portuguesa se define pela formação de uma nova nação européia e articula-se na evolução geral da civilização do Ocidente de que faz parte, no plano da luta que teve de sustentar, para se constituir, contra a invasão árabe que ameaçou num certo momento todo o continente e sua civilização. No séc. XV, a história portuguesa muda de rumo. Integrando novas fronteiras geográficas naturais que seriam definitivamente as suas, constituindo territorialmente o Reino, Portugal se vai transformar num país marítimo; desliga-se, por assim dizer, do continente e volta-se para o Oceano que se abria para o outro lado; não tardará, com suas empresas e conquistas no ultramar, em se tornar uma grande potência colonial.
Visto deste ângulo geral e amplo, a evolução de um povo se torna explicável. Os pormenores e incidentes mais ou menos complexos que constituem a trama de sua história e que ameaçam por vezes nublar o que verdadeiramente forma a linha mestra que a define, passam para o segundo plano; e só então nos é dado alcançar o sentido daquela evolução, compreendê-la, explicá-la. Não nos interessa aqui, o conjunto da história brasileira, pois partimos de um momento preciso, já muito adiantado dela, e que é o final do período de colônia. Mas este momento, embora o possamos circunscrever com relativa precisão, não é se não um elo da mesma cadeia que nos traz o nosso mais remoto passado.
E se escolhi um momento dela, apenas a sua ultima pagina, foi tão-somente porque, já me expliquei na Introdução, aquele momento se apresenta como um termo final e a resultante de toda nossa evolução anterior.
Realmente a colonização portuguesa na América não é um fato isolado, a aventura sem precedentes e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos, paralela a outras semelhantes, mas independente delas.
A expansão marítima dos países da Europa, depois do séc. XV, expansão de que o descobrimento e colonização da América se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países. Deriva do desenvolvimento do comercio continental europeu, que até o séc. XIV é quase unicamente terrestre, e limitado, por via marítima, a uma mesquinha navegação costeira e de cabotagem.
O primeiro reflexo desta transformação, a principio imperceptível, mas que se revelará profunda e revolucionará todo o equilíbrio europeu, foi deslocar a primazia comercial dos territórios centrais do continente, por onde passava a antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada oceânica: a Holanda, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha e a Península Ibérica.
O primeiro passo esta dado e a Europa deixará de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o Oceano. O papel de nova etapa caberá aos portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo desta península que avança pelo mar. Enquanto holandeses, ingleses, normandos e bretões se ocupam na via comercial recém-aberta, e que bordeja e envolve pelo mar ocidental europeu, os portugueses procurando empresas em que não encontrassem concorrentes mais antigos e já instalados, e para que contavam com vantagens geográficas apreciáveis: buscarão a costa ocidental da África, traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas. Nesta avançada pelo Oceano descobrirão as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açôres), e continuarão perlongando o continente negro para o sul.
Os espanhóis escolherão outra rota, pelo ocidente ao invés do oriente. Descobrindo a América, seguidos alias de perto pelos portugueses que também toparam com o novo continente. Virão, depois dos paises peninsulares, os franceses, ingleses, holandeses, até dinamarqueses e suecos. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV, e que lhes alargará o horizonte a fora. Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravos; na Índia irão buscar especiarias. Para concorrer com eles os espanhóis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais, procurarão outro caminho para o Oriente; a América, com que toparam nesta pesquisa, não foi para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto à realização de seus planos e que deveria ser contornado.
A Idéia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum a nenhum. É o comercio que os interessa, e daí o relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis.
Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia se fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar essas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem ao seu comércio. A idéia de povoar surge daí, e só daí. Era preciso povoar e organizar a produção: Portugal realizou estes objetivos brilhantemente. Em todos os problemas em que se propõem desde que uma nova ordem econômica se começa a desenhar aos povos da Europa, a partir do séc. XV, os portugueses sempre apareceram como pioneiros. Elaboram todas as soluções até seus menores detalhes. Espanhóis, depois ingleses, franceses e os demais, navegaram tão bem, que acabaram suplantando os indicadores e arrebatando-lhes a maior parte, se não praticamente todas as realizações e empresas ultramarinas.
Mas os metais, incentivo e base suficiente para o sucesso de qualquer empresa colonizadora, não ocupam a formação da América senão um lugar relativamente pequeno. Impulsionarão o estabelecimento e ocupação das colônias espanholas citadas; mais tarde, já no séc. XVIII, intensificarão a colonização portuguesa na América do Sul e a levarão para o centro do continente. Mas é só. Os metais, que a imaginação escaldante dos primeiros exploradores pensava encontrar em qualquer território novo, esperança reforçada pelas prematuras descobertas castelhanas, não se revelam tão disseminados como se esperava. Na maior extensão da América ficou-se a princípio exclusivamente nas madeiras, nas peles, na pesca; e a ocupação de territórios, seus progressos e flutuações, subordinam-se por muito tempo ao maior ou menor sucesso daquelas atividades. Viria depois, em substituição, uma base econômica mais estável, mais ampla seria a agricultura.
Se povoou esta área temperada, o que aliás só ocorreu depois do séc. XVII, foi por circunstâncias muito especiais. É a situação interna da Europa, em particular da Inglaterra, as suas lutas político-religiosas, que desviam para a América as atenções de populações que não se sentem à vontade e vão procurar ali abrigo e paz para suas convicções. Isto dura muito tempo;pode-se mesmo assimilar o fato, idêntico no fundo, a um processo que se prolongará, embora com intensidade variável, até os tempos modernos, o século passado. Construí-se aí uma fonte de correntes migratórias que abandonam o campo e vão encontrar na América, que começa a ser conhecida, um largo centro de afluência. Também esses elementos escolherão de preferência, e por motivos similares, as colônias temperadas.
Daí deriva um novo tipo de colonização – será o único em que os portugueses não serão pioneiros – que tomará um caráter inteiramente apartado dos objetivos comerciais até então dominantes neste gênero de empresas. O que os colonos desta categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhes ofereça garantias que no continente de origem já não lhe são mais dadas. A ocupação e o povoamento tomarão outro rumo. Em primeiro lugar, as condições naturais, tão diferentes do habitat de origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como simples povoador, da categoria daquele que procura a zona temperada.
A grande maioria dos colonos estava assim nos trópicos condenada a uma posição dependente e de baixo nível; ao trabalho em proveito de outros e unicamente para a subsistência própria de cada dia. Não era por isto, evidentemente, que se emigrava da Europa para a América. Assim mesmo, até que se adotasse universalmente nos tópicos americanos a mão-de-obra escrava de outras raças, indígenas do continente ou negros africanos importados, muitos colonos europeus tiveram de se sujeitar, embora a contragosto, aquela condição.
Em Portugal, a população era tão insuficiente que a maior parte do seu território se achava ainda, em meados do séc. XVI, inculto e abandonado; faltavam braços por toda parte, e empregava-se em escala crescente mão-de-obra escrava, primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominação árabe, como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princípios do séc. XV para seus domínios do norte da África; como depois, de negros africanos, que começam a afluir para o reino desde meados daquele século. Além disto, portugueses e espanhóis, particularmente estes últimos, encontraram nas suas colônias indígenas que se puderam aproveitar como trabalhadores.
É certo que a colonização da maior parte, destes territórios tropicais, inclusive o Brasil, lançada e prosseguida em tal base, acabou realizando alguma coisa mais que um simples “contacto fortuito” dos europeus com o meio, na feliz expressão de Gilberto Freyre, a que a destinava o objetivo inicial dela; e que outros lugares semelhantes a colonização européia não conseguiu ultrapassar: assim na generalidade das colônias tropicais da África, da Ásia e da Oceania; nas Guianas e algumas Antilhas, aqui na América.
É com tal objetivo exterior, voltado para fora do pais e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comercio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negocio; invertera seus cabedais e recrutará a mão-de-obra que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira.

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